Ao longo das últimas décadas, a necessidade de modernizar a estrutura brasileira de impostos, contribuições e taxas tem incessantemente figurado na pauta política como tema urgente. Nesta semana, por exemplo, o Ministério da Economia discutiu com o Senado e a Câmara estratégias para acelerar a votação das propostas de reforma tributária.
Para estudiosos do tema, no entanto, nenhuma das reformas até hoje propostas ou apoiadas pelos sucessivos governos buscou atingir o verdadeiro cerne do problema: a fórmula adotada para recolher os tributos, que cobra proporcionalmente pouco dos ricos e muito dos pobres.
— O sistema tributário do Brasil é injusto porque acentua a concentração da renda, ao invés de diminuí-la — afirma o vice-presidente de Assuntos Tributários da Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal (Anfip), Cesar Roxo Machado. — As reformas que são levadas ao Congresso Nacional costumam buscar a simplificação do nosso emaranhado de tributos, o que é positivo, mas elas nunca buscam a justiça tributária, o que é ainda mais importante. O tributo deve ser um instrumento de diminuição das desigualdades sociais não apenas no momento em que é aplicado nas políticas públicas, mas também no momento em que é recolhido. Quem tem mais deve pagar mais e quem tem menos deve pagar menos.
Os tributos servem para custear tanto a máquina estatal quanto os serviços públicos, como saúde, educação e segurança. De forma geral, eles incidem sobre três bases: o consumo, a renda e o patrimônio dos cidadãos e das empresas. Em todos os três pilares, existem distorções que beneficiam os ricos e penalizam os pobres.
A tributação do consumo é aquela embutida no preço de produtos e serviços. Como os tributos incidentes sobre determinada mercadoria são iguais para qualquer consumidor, quem ganha pouco, na comparação com quem ganha muito, acaba perdendo um pedaço maior da sua renda com esses tributos na hora da compra.
A solução, claro, não seria cobrar tributos variáveis conforme o poder aquisitivo do comprador. Na prática, isso se mostraria inexequível. A mudança necessária, segundo os especialistas, é a diminuição das alíquotas, de modo que a fatia da tributação do consumo fique menor dentro do bolo tributário do Brasil. Atualmente, ela responde por 43% do total — quase metade da arrecadação nacional.
Em países desenvolvidos, o peso da tributação do consumo no total da arrecadação pública é menor. Naqueles que integram a Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE), por exemplo, a média é de 33%. No Canadá, fica em 23,5%. Nos Estados Unidos, em 17,5%. Essa é uma das razões pelas quais fazer compras em certos países sai mais barato do que no Brasil.
— Os tributos sobre o consumo são indiretos. Quem é responsável pelo recolhimento desses tributos são os empresários, que repassam o valor para os consumidores. Os consumidores, então, pagam indiretamente. Como a nota fiscal normalmente não traz a totalidade dos tributos da venda, eles não conseguem enxergá-los e perceber que pesam exageradamente no bolso e que são injustos — diz Machado, da Anfip. — Se os cidadãos mais pobres enxergassem, certamente fariam protestos nas ruas para exigir mudanças, mais ou menos como fizeram em 2013 quando a passagem de ônibus subiu R$ 0,20 em São Paulo. Acredito que, enquanto não houver pressão popular sobre o poder público, o sistema tributário não vai mudar.
Divisão leonina
A desigualdade social também é alimentada pela tributação da renda. Em 1996, o país parou de tributar os sócios e acionistas que recebem lucros e dividendos de empresas. O Brasil e a Estônia são as únicas nações que não taxam essa renda paga a pessoas físicas.
Ao mesmo tempo, os especialistas consideram que a tabela de cobrança do Imposto de Renda está montada de modo a favorecer os mais ricos. Atualmente, existem cinco faixas de renda, cada uma com sua respectiva alíquota do imposto. A faixa mais baixa atinge as pessoas com rendimento mensal de até R$ 1.904, que ficam isentas do tributo. Mas é consensual que o teto salarial que garante a isenção está defasado, fazendo com que muitas pessoas de baixa renda fiquem acima dele e tenham que pagar o Imposto de Renda.
Outro problema do Imposto de Renda é que a faixa mais alta atinge as pessoas com rendimento mensal a partir de R$ 4.665, que devem pagar uma alíquota de 27,5%. Isso significa que um trabalhador que ganha cinco salários mínimos por mês (R$ 5.500) já paga a alíquota máxima do Imposto de Renda, a mesma de um executivo que recebe, por exemplo, 50 salários mínimos (R$ 55 mil).
Em outros países, existem mais faixas salariais e alíquotas superiores. Na Coreia do Sul, por exemplo, há sete faixas, e a alíquota mais alta do Imposto de Renda é de 42%.
A tributação do patrimônio no Brasil tem suas próprias distorções. O imposto sobre grandes fortunas está previsto na Constituição, ou seja, desde 1988, mas até hoje não saiu do papel porque ainda não foi regulamentado pelo poder público. A regulamentação determinaria o que é uma grande fortuna e qual é o valor do imposto a ser cobrado.
— O mundo inteiro está discutindo o imposto sobre grandes fortunas, em razão do aumento da concentração de renda e riqueza decorrente da pandemia. O Brasil parece estar fora desse movimento mundial. No nosso país, se a grande fortuna for considerada o patrimônio declarado superior a R$ 20 milhões, teremos em torno de 30 mil contribuintes e R$ 43 bilhões arrecadados por ano. É dinheiro suficiente para custear o programa Bolsa Família por mais de um ano — afirma o economista Pedro Humberto de Carvalho Junior, que é pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), vinculado ao Ministério da Economia.
Os impostos sobre veículos, imóveis e terras, pagos por ricos e pobres, também estão desequilibrados. O Imposto sobre a Propriedade de Veículos Automotores (IPVA), por exemplo, incide com a mesma porcentagem tanto sobre uma moto de luxo para o lazer da pessoa abastada quanto sobre uma moto popular para o trabalho do entregador de comida. Nos carros, ocorre a mesma coisa. Por outro lado, jatinhos, helicópteros, iates e lanchas não são taxados.
No caso do Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU), o problema é outro. Em muitas cidades, em especial nas menores, os imóveis não estão detalhadamente cadastrados, e o valor do imposto acaba sendo apenas simbólico — pesando mais no bolso dos pobres. Mesmo quando estão corretamente cadastrados, o valor venal de casas, apartamentos e terrenos costuma estar defasado, não correspondendo ao preço de mercado. Tal defasagem prejudica mais os pobres no pagamento do IPTU.
— O imóvel dos pobres é avaliado com valores mais próximos aos do mercado que o imóvel dos ricos — explica o economista Carvalho Junior, do Ipea. — Enquanto uma mansão de R$ 2 milhões é avaliada pela prefeitura para fins de cobrança do IPTU em R$ 700 mil, digamos, uma casa mais simples de R$ 200 mil é avaliada em R$ 120 mil. A base de cálculo fica proporcionalmente mais alta para os pobres.
O Imposto Territorial Rural (ITR), que incide sobre as fazendas, tem valor irrisório. Mesmo o agronegócio tendo peso decisivo na economia nacional e o território brasileiro sendo de dimensão continental, o que se recolhe com o ITR responde por algo na casa de 0,1% da arrecadação federal.
De acordo com Cesar Roxo Machado, da Anfip, uma das grandes falácias no debate sobre impostos no Brasil é a afirmação de que a carga tributária nacional é elevada demais. Isso, ele diz, não é verdade. A carga tributária brasileira equivale a 33% do produto interno bruto (PIB), índice semelhante ao de países que também oferecem saúde e educação gratuitas à população.
— No debate, quando dizem que a carga tributária é alta, eu pergunto: “A carga é alta para quem?”. Ela só é alta para quem ganha pouco. Os pobres são os únicos que podem dizer que a carga tributária brasileira é alta.
A reforma tributária necessária, resume ele, é a que reduz os tributos do consumo (aliviando a cobrança dos pobres) e ao mesmo tempo eleva os tributos da renda e do patrimônio (exigindo mais dos ricos). Ocorrendo a redução e a elevação de forma proporcional, a carga tributária total do Brasil não se alteraria.
O economista Eduardo Fagnani, professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e pesquisador do Centro de Estudos Sindicais e do Trabalho, diz que igualmente falaciosa é a afirmação de que a diminuição dos tributos dos pobres e o aumento dos tributos dos ricos sejam uma política típica de países de esquerda ou até comunistas:
— Trata-se de uma política liberal. Foi tributando os mais ricos que os Estados Unidos se recuperaram da Grande Depressão de 1929 e que a Europa difundiu o Estado de bem-estar social depois da Segunda Guerra. Hoje, com o Plano Biden, os Estados Unidos buscam se recuperar dos efeitos econômicos da pandemia justamente por meio da tributação de pessoas físicas e jurídicas de alta renda, entre outras medidas. O Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional têm preconizado esse tipo de medida.
Segundo o professor da Unicamp, é bom para o próprio capitalismo que os pobres sejam menos tributados:
— Não existe capitalismo sem consumidor. Quando os cidadãos pobres pagam menos tributos, o poder aquisitivo deles sobe e o mercado consumidor se amplia, favorecendo as empresas e a economia nacional. Havendo uma tributação justa, não são apenas os pobres que ganham. Os ricos também ganham. É a sociedade como um todo que se beneficia.
Quando os pobres arcam proporcionalmente mais com os tributos, a própria Constituição brasileira é violada. O artigo 145 estabelece que, sempre que for possível, os impostos devem ser cobrados de acordo com a “capacidade econômica do contribuinte”. Isto é, quem tem maior capacidade financeira paga mais e quem tem tem menor capacidade financeira paga menos.
— Não é justo que a parcela mais pobre da população tenha 50% de sua renda capturada por tributos e que a parcela que ganha mais de R$ 320 mil mensais tenha quase 70% da renda isenta de tributação. Essa é uma das razões pelas quais o Brasil tem uma das maiores desigualdades sociais do mundo — continua Fagnani. — O nosso modelo de tributação só não muda porque os setores sociais e econômicos que se beneficiam dele são poderosos, têm influência política, contam com o apoio dos meios de comunicação. Não é à toa que, sempre que está em dificuldades financeiras, o governo aumenta a tributação do consumo, e não a tributação da renda e do patrimônio.
Na visão do professor da Unicamp, o Congresso Nacional deveria ampliar as atuais propostas de reforma tributária que estão à mesa para incluir nelas medidas de redução das desigualdades sociais:
— Nesta pandemia, cerca de 60% da população tem passado fome em algum grau e 30% da força de trabalho ficou subutilizada. Vivemos uma crise sanitária, econômica e social como nenhuma outra. Portanto, como diz o FMI, ela exige uma resposta como nenhuma outra. A sociedade precisa que o Congresso Nacional tenha a coragem de aprovar uma reforma tributária à altura do momento crítico que vivemos.
O Senado analisa uma série de projetos de lei que modificam regras específicas do atual sistema tributário. Entre as propostas que regulamentam o imposto sobre grandes fortunas, estão o PLP 50/2020, da senadora Eliziane Gama (Cidadania-MA); o PLP 38/2020, do senador Reguffe (Podemos-DF); e o PLP 183/2019, do senador Plínio Valério (PSDB-AM).
— Essa não é apenas uma medida de fraternidade e de solidariedade, mas de justiça — argumenta Eliziane. — Sabemos que historicamente no Brasil os mais ricos pagam poucos tributos e frequentemente se beneficiaram de favores estatais. Tributar grandes fortunas é uma forma de a sociedade receber de volta uma pequena parcela de renúncias fiscais e subsídios dados no passado.
Também há projetos que acabam com a isenção tributária dos lucros e dividendos pagos por empresas a seus sócios e acionistas. Entre eles, estão o PL 5.584/2020, do senador Jaques Wagner (PT-BA); o PLP 163/2019, do senador Angelo Coronel (PSD-BA); e o PL 1.952/2019, do senador Eduardo Braga (MDB-AM).
— A isenção de Imposto de Renda a dividendos distribuídos a pessoas físicas praticamente não tem paralelo no resto do mundo, contribuindo para que o Brasil tenha um sistema tributário altamente regressivo, que não tributa renda e patrimônio dos mais ricos — afirma Jaques Wagner. — Nesse sentido, o [meu] projeto contribui para a maior progressividade tributária, além de canalizar receitas oriundas da renda dos mais ricos para financiar programas sociais voltados a pessoas em situação de vulnerabilidade.
Ainda no Senado, diversas propostas buscam corrigir as distorções da atual tabela do Imposto de Renda que prejudicam a população mais pobre. O projeto de Eduardo Braga sobre lucros e dividendos também modifica a tabela. O relator dessa proposta na Comissão de Assuntos Econômicos (CAE), senador Jean Paul Prates (PT-RN), defende ajustes no texto para que as faixas salariais mudem das atuais cinco para nove, que o teto salarial para a isenção suba de R$ 1.904 para R$ 2.737 e que a maior alíquota passe dos atuais 27,5% (para renda mensal acima de R$ 4.665) para 37,5% (acima de R$ 45 mil).
Também fazem parte dos projetos de lei relativos à tabela do Imposto de Renda o PL 999/2021, do senador Fabiano Contarato (Rede-ES); o PL 2.589/2020, do senador Jayme Campos (DEM-MT); e o PL 604/2019, dos senadores da bancada do PT.
— Com o descompasso ocasionado pela falta de correção da tabela, os contribuintes sem capacidade contributiva passaram a pagar imposto, comprometendo sua disponibilidade para custear as despesas básicas e necessárias — diz Contarato.
Atualmente, a Câmara dos Deputados estuda uma proposta de “reforma tributária justa e solidária”, redigida com base em sugestões da Anfip e da Federação Nacional do Fisco Estadual (Fenafisco). Em 2019, representantes das duas entidades apresentaram essa ideia aos senadores numa audiência pública da Comissão de Direitos Humanos do Senado (CDH).
Com informações da Agência Senado