Como foi a última grande intervenção militar dos EUA na América Latina: lições do Panamá de 1989 e o cenário atual com a Venezuela


Ao contextualizar os recentes episódios de tensão entre Washington e a região, é válido voltar no tempo para a última grande intervenção militar estadunidense na América Latina. Em 1989, a Operação Justa Causa encerrou uma fase de forte intervenção na região, com a derrubada do governo panamenho e a captura de um líder acusado de tráfico de drogas. O episódio deixou marcas políticas, legais e estratégicas que ainda influenciam o debate sobre soberania e o uso da força, sobretudo quando as pressões se dirigem a governos latino-americanos sob acusações de tráfico e conexões com o crime organizado.


Panamá 1989: o que aconteceu e por que continua relevante

A operação envolveu milhares de militares norte-americanos — estimativas comuns situam-se em torno de 30 mil — e foi anunciada como uma resposta a violência política e entraves à ordem institucional. Manuel Noriega, então chefe do governo panamenho, acabou afastado, capturado e levado aos Estados Unidos para enfrentar processos. A ofensiva ocorreu após a morte de um fuzileiro da Marinha, o que acelerou a decisão de invadir. Em termos humanos, há controvérsias sobre o número de vítimas civis, com estimativas variando conforme a fonte; a ONU registrou vítimas entre civis, enquanto críticos apontam números mais altos. Além do choque imediato, a intervenção moldou a percepção regional sobre o papel econômico estratégico do Canal do Panamá e a influência norte-americana na política interna de estados vizinhos.


O episódio também alimentou debates sobre legalidade, legitimidade e alcance da atuação externa. Enquanto os EUA defenderam a operação como necessária para restaurar a segurança e impedir o tráfico, opositores questionaram o uso da força contra um governo soberano, destacando normas internacionais de intervenção e proteção de civis. A retirada de Noriega e a transição política subsequente tiveram impactos duradouros na relação entre Panamá, Estados Unidos e a comunidade internacional, além de influenciar o modo como se discutem futuras ações fora de território americano.

Narrativas sobre narcotráfico: do Panamá ao Caribe atual

Na comparação com o cenário atual envolvendo a Venezuela, uma das linhas centrais é a retórica usada para justificar intervenções ou ações de pressão. Em 1989, o discurso circulava ao redor de envolvimento comprovado de Noriega com redes criminosas ligadas ao narcotráfico, sendo esse o argumento dominante para legitimar medidas drásticas. Já nas décadas seguintes, narrativas semelhantes foram mobilizadas contra lideranças latino-americanas, com o conceito de cartéis ou redes correndo entre acusações formais, investigações e sanções. No caso venezuelano, a pauta envolve alegações de narcotráfico ligadas a elementos do aparato de Estado, com diferentes leituras sobre a existência real de estruturas criminosas organizadas como entidades formais, ou se trataria de uma aliança ampla de autoridades que teriam enriquecido com o fluxo de drogas e recursos naturais.

Essa diferença conceitual — o peso da evidência, a natureza das estruturas acusadas e a forma de atuação — tem implicações práticas. Enquanto no Panamá o foco foi um governo claramente derrubado e uma transição de poder visível, na Venezuela o debate envolve ações militares e de alta pressão política em um contexto de disputa de poder, sanções e intervenções discretas, com ênfase em operações marítimas, ataques aéreos e, mais recentemente, medidas econômicas de isolamento. A discussão sobre base legal, transparência de informações e responsabilidade por possíveis violações de direitos humanos segue central para leitores que acompanham o tema.

A geopolítica da região: petróleo, comércio e interesse estratégico

A comparação entre os dois momentos também evidencia mudanças no mapa de interesses. O Panamá continua relevante pela importância geoestratégica do canal, que historicamente facilita o trânsito global de comércio e energia. Na Venezuela, as reservas de petróleo e a posição geopolítica do país na região elevam o peso estratégico, ampliando o risco de que disputas de poder se transformem em confrontos com repercussões econômicas amplas. Além disso, a dinâmica regional atual envolve alianças, sanções, debates sobre intervenção humanitária e a atuação de atores internacionais além dos EUA, o que complica qualquer leitura simplista de “intervenção” versus “defesa de interesses”.

Lições para o futuro: evitar escaladas e valorizar a diplomacia

O recorte histórico aponta para um fio comum: ações militares de grande escala no cenário latino-americano tendem a redefinir relações regionais e a ampliar a margem de erro político. As lições passam pela necessidade de transparência, respeito às leis internacionais, avaliação independente de danos civis e, acima de tudo, a priorização de soluções diplomáticas em situações de tensão. Enquanto a Venezuela permanece como tema de disputas complexas entre poderes regionais e globais, a experiência do Panamá deixa claro que o uso da força não é apenas uma decisão militar, mas um passo que repercute em governabilidade, economia e percepção pública de legitimidade — fatores que, em última instância, moldam o equilíbrio de poder na região.